Na noite das campeãs, o gari desfila como o grande vencedor do carnaval 2014
caetano garis

Na noite das campeãs, o gari desfila como o grande vencedor do carnaval 2014

O Brasil vibra com os campeões do carnaval de 2014, os garis do Rio de Janeiro. Após 8 dias de um movimento corajoso, os grevistas, mesmo sem sindicato, vencem as ameaças de demissão e arrancam da Prefeitura um aumento de 37% no salário e de 66% no valor do tíquete-refeição.

Caetano Manenti 9 mar 2014, 01:25

Movimento grevista resiste à pressão da Prefeitura, leva a cabo (de vassoura) uma paralisação de 8 dias e comemora aumento de 37% no salário-base e de 66% no valor do vale-alimentação.

Caetano Manenti*

juntos garis

Às oito horas da noite deste sábado, o sambódromo da Marquês da Sapucaí já estava com seus 560 refletores acessos para iluminar como a luz do sol as seis melhores escolas de samba do mundo. A 3 quilômetros dali, numa avenida muito mais escura, menos de duzentas pessoas resistiam sob chuva para assistir à festa que verdadeiramente encerrou o carnaval de 2014, o êxtase dos grevistas da Comlurb.

A celebração do Centro do Rio não poderia ter ocorrido num local mais simbólico: avenida Antônio Carlos, 251, endereço do octogenário prédio construído por Getúlio Vargas para ser a primeira sede exclusiva do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. A imponente arquitetura hoje recebe o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, palco do encontro que reuniu, ao redor de uma imensa mesa redonda, líderes grevistas, como Célio Viana; o presidente da Comlurb, Vinícius Roriz; o chefe da Casa Civil, Pedro Paulo; o procurador-geral do Município, Fernando Dionísio; o presidente do Sindicato de Empregados de Empresas de Asseio e Conservação, Luciano David Araújo, e o vice-presidente Antônio Carlos da Silva; além do presidente do TRT, Carlos Alberto Drummond; da vice Maria das Graças Paranho; e da procuradora regional do Trabalho Débora Félix. A quantidade de entidades, cargos e autoridades numa mesma sala não deixava dúvida: a greve dos garis estremeceu a cidade de Eduardo Paes.

Pela manhã, não havia indícios de que o sábado terminaria em festa. O prefeito refutava até mesmo o óbvio, a existência de uma greve na cidade.

– Nós não vivemos uma greve. O que a gente está vivendo é um motim. Greve é um instrumento que um determinado sindicato convoca e notifica o patrão com antecedência de 72 horas. Em casos de serviços essenciais, como é o caso da Comlurb, se mantém alguns serviços essenciais funcionando e aí faz a greve. O que a gente está vendo é um motim de um grupo de pessoas da Comlurb ou de fora da Comlurb claramente, como a própria imprensa apontou, movido por interesses políticos e – eu afirmo aqui – movido também por interesses empresariais, criando na cidade uma situação absurda, que obriga o gari que quer trabalhar, que é a imensa maioria, a trabalhar com um carro da polícia ou da Guarda Municipal atrás. 

Além de repetir que os garis em greve passaram a semana ameaçando violentamente colegas dissidentes, o prefeito surgia no fim de semana, então, como uma nova denúncia. Para ele, empresas privadas de limpeza incitavam a greve nos bastidores de olho no filão hoje em mãos da Companhia Urbana Municipal de Limpeza Urbana. A coleta de lixo já está privatizada em muitas cidades do país, como São Paulo e Campos dos Goytacazes, terra de Garotinho. 

Na hora do almoço, Eduardo Paes estava no estúdio do mais importante telejornal da cidade do Rio, o RJTV – 1ª Edição, da Globo. Deixou escapar ali um ar de absoluta satisfação ao ver e ouvir o líder grevista Célio Viana reclamar do seu próprio sindicato, oposição à greve desde o primeiro dia:

– Se eles têm uma briga lá, eles têm que se esforçar, participar da eleição do sindicato e ganhar. A cidade que não pode ser refém de uma luta sindical.

Dito tudo isso, era difícil acreditar que 7 horas depois, o principal secretário de Paes estaria aproveitando a popularidade de um acordo com os grevistas e posando para selfies com alguns garis mais empolgados. 

A megarreunião, aliás, nem estava marcada para este sábado, mas sim para terça. Foi o presidente do TRT, Carlos Alberto Drummond, que antecipou o encontro em três dias. A alegação era de que a previsão de chuva forte tornava a situação do lixo na rua emergencial. Para alguns garis que aguardavam do lado de fora, a mudança de data, consagrada em cima da hora, era uma manobra desonesta para dificultar a mobilização da massa grevista. Em nenhum momento do dia pôde se ver mais do que 250 manifestantes reunidos. Ironia do destino, foram destes poucos resistentes as opiniões mais relevantes para o fim da greve.

A reunião começara perto das 14h com a seguinte situação: oficialmente, os grevistas queriam chegar a R$1.200 para seu salário-base (até então de R$803) e ampliar outros direitos, como a garantia de hora-extra de 100% em caso de trabalhar aos domingos e feriados e o aumento do valor do tíquete-refeição de R$12 para R$20. Ah, claro: para os garis também era fundamental encerrar o dia com a garantia da Prefeitura de que nenhum trabalhador seria demitido. Mil e cem garis foram ameaçados de demissão durante a última semana. Vale lembrar que todos são funcionários públicos concursados.

 
Às 16h, o carro de som que servia de palanque eventual aumentou ao máximo o volume da rádio CBN. O repórter que acompanhava lá em cima a reunião trazia um “informe” desanimador. Segundo ele, a negociação só havia avançado aos R$900, R$26 a mais do que o “conquistado” pelo sindicato no acordo de segunda-feira. A informação revoltou os garis, que, a esta altura, se protegiam da chuva no posto de gasolina do outro lado da avenida. Era o
 timing terrível para a chegada de um carro de reportagem da Rede Globo. À distância, a camionete Tucson com um imenso adesivo do globo prateado foi apenas vaiada. Era pouco para a pequena multidão, que atravessou a avenida correndo e cercou o veículo para – com todas as letras – expulsar a equipe inteira que havia chegado atrasada. 


Após a massa comemorar como um gol a saída desprestigiada da Globo, não demorou para Juan Carlos, o líder grevista mais pacífico do movimento, pedir a palavra ao microfone. Reclamou de todos aqueles que coagiram motorista, repórter e cinegrafista. Logo começou ali mesmo um debate sobre como a imprensa estava tratando a greve. Enquanto a emissora do Jardim Botânico era acusada de “fechar com a Prefeitura”, os garis lembravam que a Record “só queima o Paes”. No meio de tanta apreensão, outra notícia vinda lá de cima roubava ainda mais o ânimo dos resistentes da chuva. Por mensagem de texto, advogados de líderes grevistas avisaram seus companheiros do térreo de que tinham sido impedidos de retornar a reunião após uma pequena pausa. Pelo o que se pode entender da reportagem do site d’O Globo, foi o momento em que o chefe da Casa Civil, Pedro Paulo, conversou com o presidente da Comlurb, com o procurador-geral do município e com a procuradora do Trabalho na tentativa de melhorar a proposta oferecida aos garis.

Enquanto isso, na avenida, duas cenas fotografaram a alma da categoria. Na primeira, um sujeito encharcado pela chuva repetia “gari não enferruja, gari não enf-er-ruja”. Na outra, um jovem que recém havia levado um tombaço respondia a quem lhe perguntava se estava tudo bem: “aqui é gari, rapaz!”

Eram 17h05 quando, liderados por Célio Viana, os líderes grevistas surgiram na imensa porta do prédio, escoltado pelo Batalhão de Choque da PM. Em tom apaziguador, ele trazia a oferta da Prefeitura: R$ 1.050. Parecia satisfeito com o valor alcançado. 

– Nós sabemos que as negociações são difíceis.

Ainda era pouco para a maioria da assembleia improvisada ali mesmo.

– Mil e cem! Mil e cem! Mil e cem! 

O novo grito de guerra dos grevistas mostrava, ao mesmo tempo, que a classe era dura na queda, mas que aceitaria ceder R$100 para o orçamento público. Célio Viana prometeu empenho na luta pela contraproposta e o grupo retornou ao interior do prédio, enquanto os garis que permaneceram no asfalto comemoravam antecipadamente a vitória. As marchinhas voltaram à garganta e o grande grupo se uniu em círculo para orar, comandado por Juan Carlos, uma espécie de líder religioso da greve.
O clima de festa foi interrompido pelo quase incompreensível alto-falante da Kombi de som. Era a voz desacreditada de um gari que implorava que todos recusassem o clima de festa. Lembrava que nada havia sido ganho. Foi um banho de água fria no fim de tarde daquele que talvez tenha sido o dia mais frio de todo o inverno carioca. A porta já estava fechada de novo e só abriria com a mais esperada novidade dali a mais de duas horas.

juntos com os garis


Eram 19h50 quando William Rocha de Oliveira, um dos líderes da greve, parou sobre as escadarias do prédio e deu um grito que mais pôde ser visto do que ouvido: “VI-TÓ-RIA”, dizia seus lábios e seus braços, sua boca e seu olhar. Serviu como aqueles fogos que anunciam o começo de cada desfile na Sapucaí. Célio Viana foi carregado nos ombros. Surgiram três bandeiras do Brasil. Alguns choravam, quase todos se abraçavam. Um dos garis ligou para seu primo, também gari:

– R$1.100 e “tic” de R$20!! R$1.100 e “tic” de R$20!!

– (resposta do primo)

– Vitória nossa nada! Você foi um covarde que trabalhou quase todos os dias! Eu estive aqui sempre, enfrentei meu gerente para isso! Tô com bolas nos pés de tanto andar por este Rio de Janeiro.

Aqueles que estavam lá se sentiam novos, abençoados. Trocavam ali o esteriótipo de humildes trabalhadores invisíveis, base da pirâmide social, pela pele de guerreiros de uma guerra pacíficia. Eram os ‘300’, como o filme de Hollywood, que haviam enfrentado um exército inteiro. Uma tropa liderada pelo preconceito que não admite, mesmo em 2014, que pobres não são necessariamente massa de manobra. Um exército que tem ao seu lado, como ficou claro, as maiores forças de comunicação do Rio, além, claro, do presidente da Companhia, da Prefeitura e – o pior de tudo- do próprio sindicato, que ninguém sabe quando foi eleito.

Para terminar toda esta história não poderia faltar aquela cena bizarra, que traz a certeza que estamos no Brasil, um país tão pitoresco. Depois de uma semana intensa de trocas de acusações das mais pesadas, o secretário Pedro Paulo e o presidente da Comlurb Vinícius Roriz fizeram questão de participar da festa dos garis na avenida. Recusaram todo o imenso aparato de segurança que preparava para os fundos do prédio uma retirada escoltada por mais de 20 PM’s.

Vai entender? Foram aplaudidos, abraçados, fotografados pelos garis. Mesmo que com um olhar constrangido, deram declarações como se jogassem na equipe vencedora. Apenas o mais revoltado grevista teve a coragem de enfrentá-los:

– Ah é? Agora vocês aparecem para foto, né? Que cara de pau!

garis rio

*Caetano Manenti é jornalista.


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